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Meio Ambiente

Presença de grandes mamíferos contribui para a biodiversidade da mata atlântica e pode ser importante para mitigar mudanças climáticas

Cientistas, políticos e membros da sociedade civil no mundo todo têm procurado soluções para mitigar os impactos sobre o clima causados pelo nosso estilo de vida. Esse debate foi recorrente durante a 27ª Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 27), realizada recentemente no Egito. Enquanto a redução de emissões de gases de efeito estufa e o plantio de árvores são apontados como estratégias que podem ser eficientes nessa empreitada, pesquisadores da Unesp têm estudado a possibilidade de que a conservação de grandes animais selvagens também ajude a mitigar os efeitos da mudança climática.

O ecólogo Yuri Souza é graduado pela Unesp e defendeu seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Evolução e Biodiversidade da Unesp, campus Rio Claro, sob orientação do professor Mauro Galetti. A pesquisa, intitulada Large mammalian herbivores modulate plant life-form diversity in tropical forestsanalisou dados acumulados nos últimos 10 anos de um experimento para entender como a extinção de grandes mamíferos herbívoros pode afetar as diferentes formas de vida vegetal que habitam a mata atlântica. O estudo resultou em um artigo que foi publicado na revista inglesa Journal of Ecology, da Sociedade Britânica de Ecologia.

Florestas tropicais como a mata atlântica são responsáveis por  abrigar 50% da biodiversidade do planeta. Além disso, desempenham um importante papel na captação e captura de carbono, serviço essencial na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. É a partir das intrincadas relações que enredam as diversas formas de vida que coexistem nesses territórios que as florestas conseguem manter sua vitalidade e suas funções. Galetti  explica que muitos detalhes de como se dão as interações nesses ambientes, que permitem às florestas desempenharem serviços ambientais tão importantes, ainda são desconhecidos para os ecólogos. “As florestas tropicais são mais complexas do que o universo”, diz. Ele diz que os estudos do campo na área se assemelham à montagem de um gigantesco quebra-cabeça. “As florestas são um quebra-cabeça formado por milhões de peças. E tem peças cujo formato a gente ainda nem sabe.”

Ainda hoje, as pesquisas que buscam compreender os impactos da extinção de certos animais enfrentam problemas e críticas no aspecto metodológico. Em geral, estes estudos envolvem comparações entre áreas de floresta onde existem certas populações de animais com outras onde elas não estão presentes. Galetti e Souza comentam que essa abordagem apresenta problemas, pois é impossível controlar as variáveis que podem incidir entre duas florestas distintas. Isto impede comparações diretas, uma vez que não se pode ter certeza de como se deu em cada floresta o processo para que se adaptassem à ausência ou à presença dos animais. Inspirando-se em estudos realizados nas savanas africanas, Galetti há 15 anos elaborou o experimento de exclusão de mamíferos na mata atlântica. A metodologia do experimento envolve o estabelecimento de barreiras físicas que impeçam a entrada de animais de médio e grande porte em pequenas parcelas da floresta.

A  floresta como um laboratório

Um dos maiores problemas para os cientistas é como desenvolver experimentos em grande escala com o mesmo rigor científico que os experimentos realizados em laboratório. “A floresta é nossa grande placa de Petri” diz Galetti, fazendo referência aos recipientes de vidro utilizados em laboratório para cultura e identificação de microrganismos.

Para driblar esse problema, o experimento proposto por Galetti consiste em cercar pequenos currais na floresta da mata atlântica, de maneira a evitar a entrada de qualquer animal com mais de 1kg. Dessa forma, o grupo de pesquisa selecionou quatro áreas para observação. A primeira foi no Parque Estadual da Serra do Mar, em uma região que apresenta tanto a anta quanto a queixada; depois, no Parque Estadual de Carlos Botelho, local que conta com a presença de antas, mas não de queixadas; no Parque Estadual Ilha do Cardoso, onde há apenas queixadas; e, por fim, também no Parque Estadual da Serra do Mar, porém na base de Vargem Grande, onde não há presença significativa de nenhum dos animais. Ao lado desses currais fechados, Galetti estabeleceu uma área do mesmo tamanho onde os animais podem circular livremente.

Dessa forma, em 2009 foram demarcadas 30 áreas, também chamadas de parcelas, em cada uma das regiões. Em cada campo foram estabelecidas 15 parcelas abertas, que serviram de controle e permitiam a entrada de animais, e 15 parcelas fechadas, cercadas por uma grade de metal, simulando a extinção dos animais. As quatro regiões totalizaram 120 parcelas de, aproximadamente, 15m² cada. Galetti comenta que foi preferível fazer várias parcelas de um tamanho reduzido para diminuir o impacto da destruição das cercas por conta de quedas de árvores ou galhos, o que comprometeria o experimento. A ideia se mostrou estratégica em 2019; 10 anos depois da instalação das parcelas, ainda havia 86 inteiras, com dados que podem ser utilizados.

Nas parcelas fechadas, a grade impede que animais acima de 1kg entrem. Ao todo, foram construídas 60 parcelas fechadas. Crédito: Projeto DEFAU-BIOTA

O experimento, que vem servindo de base para diversas pesquisas de graduação e pós-graduação, gera dados para estudos de interações em diversos níveis, ao oferecer janelas de observação que vão dos insetos aos fungos, plantas e micróbios do solo. Galetti diz que esse é o experimento dos sonhos de muitos ecólogos. “Podemos investigar de que forma a presença dos animais pode ser importante para as plantas, os micróbios no solo, os invertebrados e até mesmo para os serviços ecossistêmicos”, diz.

Para a florestas, queixadas são grandes animais

Para o então estudante de mestrado Yuri Souza, a questão que despertava interesse girava em torno dos efeitos da presença de grandes animais sobre as interações entre as diferentes espécies de plantas. Em sua pesquisa, Souza observou de que forma o sumiço destes animais pode interferir na dinâmica, no crescimento e na diversidade de espécies vegetais. “Essa ideia surgiu porque a mata atlântica tem sofrido muito com a perda de animais, seja por caça ou por destruição de habitat”, comenta ele.

A anta é considerada o maior mamífero herbívoro do Brasil, podendo chegar a pesar até 300kg, e é um animal solitário. Já a queixada, apesar de menor – seu peso pode chegar até 40kg – também é classificada como um mamífero de grande impacto para a floresta, pois vive e se desloca em grandes grupos, que podem variar de 50 a 300 indivíduos. Ambas as espécies são reconhecidas como ameaçadas de extinção, principalmente devido à caça ou à conversão de seus habitats em áreas de plantio.

As 60 parcelas abertas, utilizadas como controle, eram demarcadas apenas com um fio delimitando a área. Dessa forma, é possível identificar o campo de estudo e possibilitar a entrada de qualquer animal.
Crédito:  Projeto DEFAU-BIOTA

Ao explicar a dinâmica das interações entre estes animais e a floresta, Souza chama a atenção para a grande relevância das funções que desempenham. Eles são os únicos capazes de ingerir frutos com sementes grandes, contribuindo assim para sua dispersão. Igualmente importantes são outros dois comportamentos que as espécies apresentam, chamados de pisoteamento e herbivoria. “As vegetações dependem destes animais para controlar as espécies dominantes. Uma forma de controlar essa dominância e permitir que outras surjam é justamente por meio da herbivoria e do pisoteamento. São os mamíferos de médio e grande porte que apresentam estes comportamentos”, diz. Souza reitera que as funções desempenhadas por esses mamíferos são insubstituíveis, e sua extinção resultaria em grandes desequilíbrios para os ambientes de mata atlântica.

Para avaliar estas hipóteses, Souza e demais pesquisadores envolvidos analisaram dados coletados no experimento entre 2009 e 2019 referentes ao crescimento de plantas nas parcelas abertas e fechadas. Para certificar-se de que estariam observando efetivamente estes impactos sobre a vegetação, o grupo de pesquisadores focou apenas o desenvolvimento de plantas jovens, cuja altura estivesse entre 10cm e 1m. “Os filtros de seleção, de sobrevivência das plantas, atuam mais nos períodos de mais juventude. Então, se uma planta cresceu e ultrapassou o estágio de 1m, podemos esperar que provavelmente chegará à fase adulta”, explica Souza.

Nas áreas abertas, mais diversidade

Para acompanhar o processo de desenvolvimento, o grupo ia a campo duas vezes por ano visitar cada uma das parcelas, tanto abertas quanto fechadas, e categorizar todas as plantas que elas abrigavam. Cada planta foi identificada com uma tag de alumínio, que continha a maior quantidade possível de informações a seu respeito. Graças às tags, na visita seguinte o grupo foi capaz de conferir se a planta continuava viva e crescendo, ou se havia sido comida, ou mesmo morrido por outros motivos. Em suas visitas, o grupo registrou seis categorias principais de plantas na mata atlântica: árvores, palmeiras, lianas, arbustos, ervas e bambus.

“Primeiro olhamos a diversidade dos grupos de plantas, para observar quais existiam em cada parcela e qual era o número de cada indivíduo de cada grupo. Depois, tentei investigar, de maneira mais aprofundada, de que forma esses animais podem afetar a diversidade nessas áreas”, diz Souza.

As tags de alumínio são ideais para a identificação das plantas, pois os animais não conseguem ingerí-las. Assim, mesmo quando uma planta é comida, sua identificação permanece no solo, para que o grupo a encontre na próxima visita.crédito: Projeto DEFAU-BIOTA.

Um dos principais dados observados, destacados por Souza e Galetti, foi a predominância de árvores e palmeiras nas parcelas fechadas. Os pesquisadores constataram que, ao final dos 10 anos, as áreas nas quais grandes mamíferos não podiam entrar apresentaram 38% mais árvores e 22% mais palmeiras, do que as áreas com a presença dos animais. O resultado foi que as parcelas fechadas tiveram uma diminuição tanto na diversidade de grupos vegetais como na quantidade de indivíduos dos grupos de lianas, arbustos e ervas. “Chegamos à conclusão de que esses animais desempenham um papel controlando a dominância da floresta. Na ausência deles, algumas espécies raras ou pouco abundantes desaparecem”, explica Souza.

Ainda são necessários mais estudos para entender as causas da dominância observada pelas palmeiras e árvores em áreas sem os grandes mamíferos. Porém, Galetti e Souza supõem que as palmeiras jovens sejam muito frágeis e morram por conta do pisoteamento e da herbivoria. Assim, ao eliminar esses animais, as plantas conseguem se desenvolver sem empecilhos. Os ecólogos destacam que o principal tipo de palmeira encontrado nas regiões do experimento é o palmito-juçara e relembram que, em pesquisa anterior, o grupo já havia chegado à conclusão de que as queixadas preferem áreas de palmitais, pois comem o fruto que cai da planta, corroborando a suposição da herbivoria como ação de controle.

Já para a dominância das árvores, os pesquisadores ainda não têm respostas. Assim como no caso das palmeiras, Galetti desconfia que o principal fator de controle da população de árvores seja a herbivoria. Para confirmar essa suposição, o pesquisador está orientando um trabalho de doutorado de outra estudante da Unesp, no qual pretendem analisar o DNA das fezes de antas e queixadas, de maneira a identificar as espécies presentes e conseguir caracterizar sua alimentação.

Ao discutir os mecanismos pelos quais a presença dos animais se traduz em mais biodiversidade, Souza comenta que esse fator é essencial para que a floresta encontre meios de resistir aos efeitos das mudanças climáticas. “Esses animais estão permitindo que outros tipos de formas de vida sejam selecionados, não apenas uma forma ou duas. Isso amplia a diversidade funcional da floresta”, explica. Galetti compara essa diversidade a um jogo de cartas: “quanto mais espécies, mais cartas você tem na mão, ou seja, mais oportunidades de manter o ‘funcionamento’ da floresta”.

Souza pondera que, mesmo quando queixadas e antas não interagem diretamente com as plantas, suas ações sobre o ambiente acabam impactando o desenvolvimento da vegetação. “Alguns animais comem raízes, e isso os leva a cavar, alterando a estrutura do solo. Eles também defecam, o que fornece um input de nutrientes incrível no solo. Os animais contribuem de maneiras diferentes para manter os serviços ecossistêmicos, e a contribuição deles para outros processos pode dar vantagens para as plantas”, explica.

Experimento semelhante, agora na Amazônia

Souza destaca que esses resultados são apenas um primeiro passo para começar a compreender, de maneira mais aprofundada, a relação entre os animais e a biodiversidade vegetal. O pesquisador aponta que os processos envolvidos em uma floresta ocorrem ao longo de dezenas, até mesmo centenas de anos. Por isso, explica, é fundamental que experimentos de longo prazo nestes moldes recebam financiamento pelo período adequando a fim de possibilitar a obtenção de dados referentes a longos intervalos de tempo. No dia 1º de novembro de 2022, foi aprovado o projeto FAPESP DEFAU-BIOTA: efeitos da defaunação no carbono do solo e na diversidade funcional de plantas da Mata Atlântica, o que garante a manutenção do experimento de exclusão até 2024.

Souza e Galetti relatam que o experimento já inspirou outros de metodologia semelhante, inclusive um que está sendo desenvolvido na Amazônia, por pesquisadores da Unesp e da Unicamp. Esse novo estudo segue a premissa básica, de criar parcelas fechadas e abertas para estudar como a exclusão de animais afeta o ambiente, porém conta com algumas modificações: além de serem parcelas maiores, de 10mx10m, as barreiras físicas foram feitas de maneira a evitar também a entrada de pequenos animais, como roedores. Galetti comenta que a expectativa é que os processos na Amazônia sejam mais rápidos, por conta da temperatura. “A temperatura faz com que as plantas cresçam mais rápido. A mata atlântica de São Paulo, por exemplo, é um ambiente frio, então as plantas não crescem muito”, explica.

Galetti também está envolvido na organização de um curso, em parceria com a Florida International University em Miami, no qual as parcelas serão utilizadas como material didático para estudantes americanos e da Unesp. “A ideia é que essas parcelas sirvam de inspiração para alunos brasileiros e estrangeiros de como conduzir experimentos em ecossistemas complexos. Então, além da pesquisa científica, também estamos usando esse experimento único para treinar alunos”, comenta Galetti.

Os pesquisadores destacam a importância de retornar para a sociedade os resultados e os processos que estão sendo realizados no experimento e, com isso em mente, criaram uma página para o projeto. Nela, estão disponíveis fotos do campo, vídeos, informações sobre as áreas de estudo e dos animais e, até mesmo, todos os dados coletados até o momento.

Fonte: Malena Stariolo – Jornal da Unesp

Confira também: Pesquisa da UFRGS e UEA aponta que fungos da casca-preciosa podem ser capazes de degradar plástico

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