Guardiões da Terra – A luta incessante dos povos originários e a necessidade de um olhar mais direcionado de parte dos órgãos governamentais
A pesquisadora Eleonore Setz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), adentrou pela primeira vez, já há 43 anos, as matas do Vale do Guaporé e os campos verdejantes do Cerrado Mato-Grossense em busca das aldeias Alantesu e Juína (Nambiquara), respectivamente. O objetivo era se conectar com os costumes destes povos, entender seus hábitos alimentares e suas relações com o ambiente na obtenção da sua comida.
Como diz a pesquisadora: “Nós, urbanóides, vivemos uma vida surreal, não temos muita ideia de onde vem a nossa comida, a ponto das crianças acharem que o leite vem da caixinha. Por isso desperdiçamos, não relacionamos a comida com o nosso trabalho, com o uso do ambiente para sua produção”. Com os índios é diferente, eles possuem uma corresponsabilidade natural com a terra e com o que ela provém de alimento para eles. Há uma certa simbiose onde a mãe natureza cuida das tribos indígenas e os índios cuidam da mãe natureza. “Por isto era importante compreender este mecanismo e trazer a tona a vida tradicional, de forma científica, a fim de elucidar e esclarecer algumas questões sobre nossa dependência do ambiente e os perigos da sociedade de consumo”, relembra Setz.
Imbuída desta inquietude, a pesquisadora arrumou sua mochila e equipamentos de trabalho e adentrou por meses na rotina dos povos Alantesu (Floresta) e Juína (Cerrado), a fim de descobrir sobre o modo de vida destas duas aldeias indígenas e sua relação com a comida. “Aprendi sobre os sistemas interligados de Odum na aula de Ecologia (onde os organismos vivos e o seu ambiente não vivo interagem entre si) e pensei: na cidade comemos itens produzidos em outros estados ou países, fica difícil delimitar o sistema. Quem sabe na vida rural? Mas, também eles usam insumos agrícolas que vêm de outras regiões. Por outro lado, uma aldeia indígena, mesmo que tenha algum insumo externo, daria para avaliar”, relembra. “E se eu pudesse comparar uma aldeia na floresta com solos ricos e férteis; com outra da mesma cultura, no Cerrado, onde os solos são pobres em nutrientes e pouco férteis?”, recorda.
E foi justamente o que a pesquisadora fez. O estudo utilizou a teoria do forrageio ótimo para fazer estas comparações e o resultado foi que a aldeia Juína do Cerrado gastou três vezes mais tempo nas atividades de subsistência e quatro vezes mais área, ainda que usando esta área de um modo mais eficiente (acampando pelo caminho, atingindo regiões mais distantes nestas caçadas), quando comparado com a aldeia Alantesu, localizada na floresta, no Vale do Guaporé. “A pesquisa mostrou que a vida era mais difícil no Cerrado, incluindo o rio Juína que possuía águas claras e dificultava a pesca”, complementa.
Tais apontamentos inferem que em solos poucos férteis, os alimentos são menos abundantes e a vida é mais difícil. Portanto, o tempo e o espaço que os índios usam para obter sua comida será muito maior. Por isso, o trabalho de órgãos de proteção aos indígenas, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), é essencial para sua preservação. É preciso um olhar crítico e diferenciado frente a diversidade de povos originários do Brasil, pois cada tribo possui uma particularidade ímpar. A aldeia Juína (Cerrado), por exemplo, tem na caça e coleta sua principal fonte de sobrevivência, logo a área destinada a esta tribo deve ser enorme. “Infelizmente hoje, o Google Earth mostra que a área de caça mapeada da aldeia Juína (Cerrado Mato-Grossense) se transformou em plantação de soja, e existe inclusive uma cidade onde era um dos acampamentos de caça”, conta Setz.
Ademais, de acordo com a pesquisadora, as aldeias se mudam de dez em dez anos e assim a área antiga utilizada descansa. Somente depois de descansar uns 50 anos é que pode prover subsistência novamente, tanto de plantio como de caça e por isto a área de proteção precisa ser extensa. “As pessoas não entendem, ou melhor, não querem pensar nisso, mas se a reserva for muito pequena não haverá área para a terra descansar e o uso ininterrupto vai degradar o ambiente. A preservação do ambiente pelos índios se dá na medida em que há áreas de descanso da terra, bolsões onde os animais não sejam caçados para funcionar como “reserva” de caça futura! Por isso as reservas devem ser grandes para dar conta destes bolsões, destas áreas de descanso. No Cerrado, as áreas precisam ser ainda maiores do que as da floresta fértil e a densidade humana precisa ser baixa, senão todos os recursos serão esgotados”, explica a pesquisadora.
Por que proteger os indígenas é proteger a biodiversidade?
O fato é que a cada dia que passa nosso meio ambiente grita por socorro, nossas águas estão ficando cada vez mais insalubres e escassas, nossos solos inférteis e caminhamos para um desastre ambiental. Se as autoridades governamentais não se conscientizarem sobre os impactos das ações antrópicas no meio ambiente e dos infortúnios do aquecimento global para o planeta, estaremos caminhando rumo ao fim. “Hoje, os produtores estão “gastando” a fertilidade do ambiente, adubando e poluindo as águas, tirando a floresta que nos dá a chuva e enche os aquíferos, enfim gastando o patrimônio do Brasil e privatizando estes recursos”, aponta.
Caberia citar aqui Ailton Krenak, que diz em trecho de seu livro ‘Ideias para adiar o fim do mundo’: “O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.”
Entretanto, há formas de evitar o colapso. Uma delas é a preservação das áreas indígenas e de seus povos. De acordo com relatório emitido pela Organização das Nações Unidas (ONU) a proteção indígena ajuda a resguardar a biodiversidade. É que, de acordo com o documento, a destruição da natureza é mais lenta nas terras onde vivem os povos indígenas do que no resto do planeta. Hoje, estima-se que a população indígena brasileira seja de 1,3 milhão. O Censo Demográfico 2010 revelou que 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas e que o crescimento no período (2000/2010), 84 mil indígenas, representou 11,4%. Percentual inexpressivo, quando comparado com o período anterior (1991/2000) com crescimento de aproximadamente 150%. Ocorre que, entre incêndios e desmatamento crescente nas matas, lutas pela demarcação de terras em um país cujo Estado negligencia a causa e a crescente expansão da agricultura e urbanização desenfreada fica difícil se manter de pé, quiçá aumentar a população indígena e seu território.
Neste contexto, o apoio do Estado é fundamental: “Por meio da minha pesquisa, a Funai descobriu, por exemplo, que a aldeia Juína (Cerrado) caçava fora da reserva. Em vez de trocar a área com um vizinho, desviou a atenção dos índios para ir pescar mais ao norte. Ou seja, usaram meus dados contra eles. Isto me deixou desolada. Depois parece que acabaram trocando, mas não para ajudar na caça, mas para ligar esta reserva a outra, de forma que os índios não precisassem sair da reserva para visitar os outros Nambiquara.”, finaliza. Procurada para comentar sobre o fato relatado, a Funai não se posicionou até o fechamento desta edição.