Metodologia inédita mapeia queimadas no Cerrado ao longo de 20 anos
Ao longo de 20 anos, 41% do Cerrado brasileiro esteve em chamas em algum momento. A área média queimada anualmente, entre 2000 e 2019, foi de 109.138 hectares, o que corresponde a 5,4% dessa vegetação. Os números fazem parte da pesquisa desenvolvida por Vera Laísa Arruda durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Florestais (PPG-CFL) da Universidade de Brasília.
Em sua dissertação, intitulada Mapeamento de cicatrizes de áreas queimadas no Cerrado usando imagens Landsat, Google Earth Engine e Deep Learning, ela criou uma metodologia capaz de cobrir todo o bioma no país e ainda quantificar quantas vezes cada área queimou no período estudado.
Por exemplo, observou-se que 270.601 km² queimaram de duas a três vezes, 181.612 km² queimaram de quatro a dez vezes e 13.085 km², mais de dez vezes. “Isto indica que mudanças do uso da terra têm alterado o regime do fogo, aumentando a frequência da ocorrência dos incêndios florestais”, afirma a egressa em seu trabalho.
Segundo ela, o fogo mapeado foi de todos os tipos, tanto manejado quanto criminoso, e há grandes mosaicos de áreas com alta frequência de chamas observadas no meio-norte e norte do bioma, nos estados do Tocantins e Mato Grosso, e a leste, na ilha do Bananal (TO).
Pelos estudos, o fogo predomina em área de vegetação natural (formação florestal, savânica e campestre) e em áreas protegidas, como terras indígenas, unidades de conservação e territórios quilombolas – onde é comum realizar queimadas para limpeza do solo, caça, proteção de aldeias, estimulação de floração/frutificação e rebrota de plantas, eliminação de pragas, entre outros.
“A pesquisa da Vera foi uma importante contribuição no desenvolvimento de uma técnica de mapeamento de áreas atingidas por fogo em todo o bioma Cerrado, em nível de detalhes locais. Isto vinha sendo feito, mas em estudos localizados, em menor abrangência espacial”, conta o coorientador Eraldo Matricardi, docente do Departamento de Engenharia Florestal (EFL) da UnB.
TESTE E VALIDAÇÃO – Vera Laísa desenvolveu uma metodologia semiautomática para o mapeamento de áreas queimadas no Cerrado a partir de imagens do satélite Landsat e do algoritmo Deep Learning, implementado nas plataformas Google Earth Engine e Google Cloud Storage – ferramentas de busca e processamento de dados nas nuvens.
Inicialmente, o ano escolhido para testar a técnica foi 2017. Foi obtida uma precisão de 97% a partir de validação com 2.200 pontos. Comprovada a eficiência da metodologia para o mapeamento de cicatrizes de fogo, foi ampliada para os anos de 2000 a 2019 para que se pudesse ter um melhor entendimento do comportamento do fogo no Cerrado a partir da série histórica dos últimos 20 anos.
“Sua grande virtude foi usar uma ferramenta nova, criar um algoritmo, aprender a dominá-lo e depois testar esse algoritmo para mapear toda ocorrência de fogo no bioma Cerrado”, declara seu orientador, Reginaldo Pereira, professor do EFL e diretor da Fazenda Água Limpa (FAL), estação experimental da UnB.
Segundo ele, Vera foi capaz de responder em sua dissertação a algumas questões que sempre tinham em mente. Por exemplo: quando se trabalha com sensoriamento remoto, como detectar áreas atingidas por fogo no Cerrado utilizando imagens de satélite e qual a precisão de tal mapeamento? Qual o melhor período do ano para detectar áreas queimadas no Cerrado para que as cicatrizes não fiquem mascaradas?
“Ela conseguiu detectar também outras informações importantes, como o comportamento do fogo no Cerrado nas duas últimas décadas – se passou mais de uma vez em um local, qual a área atingida, a agressividade desse fogo, as fitofisionomias mais atingidas, e as categorias fundiárias com maior incidência de fogo. Então, muitas questões que tínhamos em mente foram sanadas pela Vera com seu trabalho”, pontua Pereira.
A egressa da Universidade conta que, como trabalha em um instituto de pesquisa ambiental, já via desde antes a necessidade de se criar uma metodologia robusta e inovadora para mapeamento semiautomático de área queimada no Brasil.
“Foi bem desafiador desenvolver uma metodologia nova, com ferramentas inovadoras de aprendizado de máquina. Ao final do projeto, foi muito gratificante ter uma base de dados única para o Cerrado, em uma série temporal longa e com uma boa resolução de dados”, comenta a agora mestre em Engenharia Florestal Vera Laísa Arruda.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS – A pesquisadora frisa que, nas últimas décadas, a ocorrência de fogo tem aumentado no Brasil, e, consequentemente, as emissões de gases de efeito estufa também tendem a crescer – para se ter uma ideia, se fossem contabilizados, apenas os incêndios florestais relacionados ao desmatamento na Amazônia teriam contribuído com um aumento de 21% nos cálculos de emissões anuais de gases do efeito estufa do Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Essa estimativa para o Cerrado ou para o país também pode ser feita agora a partir dos dados produzidos na dissertação de Vera. “Os eventos de fogo são uma importante fonte de emissões de gases de efeito estufa e sua recorrência pode alterar a paisagem e o microclima local. Aumentar a emissão desses gases tem efeito direto nas mudanças climáticas globais”, declara a egressa da UnB.
As conclusões de seus estudos, segundo ela, destacam a importância da adoção de estratégias de gestão e políticas orientadas para a conservação dos biomas e prevenção de incêndios florestais.
“Os atores e gestores devem se preocupar com cenários futuros de mudanças climáticas e maiores riscos de ocorrência de fogo. Além de que devem ser feitas ações para o combate ao desmatamento, pois muitas vezes o fogo é usado para limpeza de áreas desmatadas. Também deve ser feito o incentivo ao uso de práticas agrícolas com tecnologias mais avançadas, para que não se use o fogo também como ferramenta agrícola”, recomenda Vera Laísa.
“Os resultados da pesquisa iniciada pela Vera são o primeiro passo para a estimativa mais precisa das emissões de gases do efeito estufa provenientes da queima da biomassa de diferentes biomas brasileiros. A partir de agora, estudos complementares poderão se basear nas áreas atingidas por fogo para estimar a quantidade de biomassa consumida em cada incêndio e estimar a quantidade de gases emitidos em cada caso”, complementa o professor Eraldo Matricardi.
Mapa revela área queimada no Cerrado entre 2000 e 2019. Imagem: Reprodução/Dissertação
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – A dissertação de Vera já se desdobrou em um artigo escrito em conjunto com o então orientador, o coorientador e mais duas pesquisadoras do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) – onde a egressa da UnB atua profissionalmente como analista de pesquisa. O estudo foi publicado na revista Remote Sensing Applications: Society and Environment, de alto impacto internacional – equivale ao Qualis A1 no conceito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A metodologia desenvolvida por ela também já serve de base neste momento para o Projeto de Mapeamento Anual de Fogo no Brasil (MapBiomas Fogo), uma iniciativa do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. A proposta é produzida por uma rede colaborativa de cocriadores formada por organizações não governamentais (ONGs), universidades e empresas de tecnologia organizados por biomas e temas transversais.
Os dados foram ampliados para todo Brasil e estão disponíveis à sociedade em geral e aos órgãos públicos e ONGs, a fim de apoiar a definição de estratégias e ações de monitoramento, controle e planejamento da prevenção e combate aos incêndios florestais no Cerrado.
“Participo também da equipe do MapBiomas Fogo, no qual fizemos o mapeamento de área queimada para todos os biomas do Brasil de 1985 a 2020, com uma grande aplicação da metodologia desenvolvida no meu mestrado. Serviu para criar uma base de dados nova para todo o país, para novos projetos, suporte para prevenção e combate a incêndios e fonte de informação para políticas públicas”, conta Vera Laísa.
Acima, é possível identificar no mapa onde houve queimadas mais e menos frequentes no Cerrado ao longo dos 20 anos estudados por Vera Laísa Arruda. Clique na imagem para ampliá-la. Imagem: Reprodução/Dissertação
“Do ponto de vista científico, os resultados que estão sendo gerados com a aplicação da metodologia desenvolvida na pesquisa da Vera ampliarão substancialmente o entendimento da ocorrência e propagação do fogo na vegetação nativa e nas áreas antropizadas no Cerrado. Com isso, será possível o desenvolvimento de estudos mais específicos sobre os impactos do fogo na vegetação, animais, socioeconômicos e no ser humano”, avalia o professor Eraldo Matricardi.
O Cerrado ocupa uma área de cerca de 2 milhões km², localizada na porção central do país. Matricardi acredita que a metodologia de Vera tem potencial para ser aplicada para os demais biomas brasileiros, com os devidos ajustes às características de cada região.
“Além disso, a metodologia poderá ser aplicada a baixo custo por organizações e instituições que desejem desenvolver outros mapeamentos com séries espaçotemporais menores, ou mesmo usando dados de satélites que permitam o mapeamento de maiores detalhes na superfície de cada região ou área de interesse”, acrescenta.
FOGO X INCÊNDIO – Vale lembrar que nem toda chama na vegetação é danosa, e que fogo é diferente de incêndio. Tanto Vera Laísa Arruda como o professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas (ECL/IB) Carlos Henke destacam que o fogo faz parte de um processo natural do Cerrado e também tem seus usos culturais por populações tradicionais. De outro lado estão os incêndios causados por falha ou imperícia de indivíduos, que causam estragos, às vezes irreversíveis, para a vida humana, animal ou vegetal, entre outras consequências.
“O fogo […] é uma característica comum e determinante da vegetação do Cerrado. Porém, a rápida ocupação da região tem mudado o regime natural do fogo (ocorrência e frequência de queimadas) através da conversão de áreas nativas para agricultura ou pastagem, gerando consequências para a estrutura e composição da vegetação. Essas alterações das fitofisionomias, por sua vez, favorecem a ocorrência de incêndios mais intensos e frequentes e, consequentemente, aumentando os impactos causados”, ensina Vera Laísa em sua dissertação.
“É preciso entender que o incêndio é uma queima descontrolada. Nós, humanos, quando combatemos e fazemos a prevenção, estamos tentando controlar o fogo, e isso é bom. O fogo não é ruim, o incêndio é, porque você perde o controle do fogo”, afirma Carlos Henke. Para ele, o ideal é sempre investir em prevenção, que é mais barato e mais seguro que remediar depois.
“Não é só combater! Prevenir é sempre melhor que combater os incêndios. Na prevenção você economiza dinheiro e esforço gerencial, expõe menos o brigadista e a população às condições insalubres provocadas pelo incêndio. Também evita acidentes e morte de pessoas e animais e injúrias à vegetação. Contudo, os incêndios estão ocorrendo de forma muito severa ultimamente e ainda ocorrerão, mesmo com todo cuidado, toda a prevenção e o manejo integrado do fogo (MIF). Então, o combate sempre existirá”, analisa o professor do ECL.
Henke explica que combater incêndios é complexo, pois demanda investimento em capacitação contínua, equipamentos e tecnologias. “As tecnologias progressivamente vão melhorando nossa capacidade de combate. Mas equipamento bom e novo também precisa de manutenção e pessoal capacitado. Às vezes a manutenção é em campo mesmo, não dá tempo de mandar um equipamento para oficina”, relata.
“E o combatente precisa ser qualificado para lidar com adversidades, desde realizar adaptações de encaixes hidráulicos até realizar a limpeza de carburador de motobomba, além de ter condições de prestar primeiros socorros a eventuais vítimas (inalação de gases, acidentes com animais peçonhentos, etc.) e realizar resgate de animais. Isso exige habilidades múltiplas de pessoas numa equipe igualmente múltipla. Isso exige constante qualificação”, completa o docente.
As tecnologias trazem inovações em equipamentos, mas não apenas isso. Também ajudam no combate a incêndios com agentes químicos, como espumas, umectantes, retardantes de chamas, entre outros. Mas para se chegar ao produto ideal, viável e eficaz, é preciso haver muita pesquisa e tempo para fazer adaptações até ser possível incorporar os novos produtos.
“Optar pelo combate químico necessita um nível muito mais elevado de qualificação dos combatentes e das agências, as quais ainda terão que lidar com os impactos negativos dos agentes químicos sobre a biodiversidade e os recursos hídricos. Ainda não estamos preparados, mas não podemos postergar pesquisas nesta área”, afirma Carlos Henke, que coordena o Projeto Prometeu na Universidade de Brasília desde 2017.
Documentário de 32 minutos dirigido por Carlos Henke traz os bastidores e toda a complexidade das queimadas florestais. Assista aqui. Imagem: Divulgação
A iniciativa tem o objetivo de avaliar as tecnologias de retardantes químicos de chamas para o combate aos incêndios florestais no bioma Cerrado e os principais impactos ambientais e institucionais do uso.
“Conhecer os impactos negativos do combate químico no Cerrado e sua eficiência e efetividade é o principal objetivo do Projeto Prometeu. A ideia é conduzir experimentos em laboratório e campo nos quais haja o uso de fogo e dos agentes químicos. Durante as queimas, que por vezes duram apenas minutos, e no acompanhamento dos impactos sobre solos e flora, que podem perdurar por anos, o Projeto Prometeu tenta elucidar várias perguntas deste quebra-cabeças enorme que é o combate aos incêndios”, esclarece o professor do IB.
“Uma coisa já sabemos: os dados gerados são muito importantes e é necessário que os gestores estejam cientes da complexidade inerente ao combate químico, pois alguns produtos químicos funcionam bem, outros nem tanto. Porém, em algum grau, os efeitos adversos sempre incidirão sobre o ambiente, sobre as sociedades e sobre as finanças públicas”, arremata Henke.
DOCUMENTÁRIO – Essa complexidade das queimadas florestais e a necessidade da formação sólida dos combatentes e do uso de diferentes ferramentas de apoio às operações são detalhadas no recém-lançado documentário Fogo na Mata, fruto do Projeto Prometeu.
O manejo integrado do fogo como atuação estratégica para o combate de incêndios no Brasil é o tema central do filme, que tem 32 minutos, e conta com a participação do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Prevfogo/Ibama), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (CBMDF).
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