Pesquisa feita na UFU que resultou em patente e foi aprimorada na Embrapa é solução para interromper a insegurança alimentar
A Agência Intelecto — órgão da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) responsável pelo estímulo à inovação e à proteção do conhecimento gerado na instituição —, o Comunica UFU destaca, como exemplo de tecnologia protegida, uma pesquisa realizada na universidade e que possibilitou, nos últimos anos, o desenvolvimento de uma eficiente ferramenta de combate à fome e à pobreza.
Batizada popularmente como Sisteminha, a tecnologia social aprimorada na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) utiliza o conhecimento técnico-científico para produzir alimentos em um quintal de, pelo menos, 100 metros quadrados. Ela vem beneficiando famílias de diversos estados brasileiros e de países africanos. Mais recentemente, a tecnologia começou a ser aplicada também em outros países da América do Sul.
Sua relevância se amplia durante a pandemia de covid-19, na qual a insegurança alimentar vem se agravando. No último mês de julho, a publicação do relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo”, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU), revelou que 2,3 bilhões de pessoas (30% da população mundial) não tiveram acesso à alimentação adequada em 2020.
O Sisteminha é versátil, sendo possível a produção de peixes, ovos, galinhas, grãos, legumes, frutas, hortaliças, húmus de minhoca e composto orgânico, entre outros. “É uma metodologia simples, a gente não interfere culturalmente nas famílias, consegue retirar as pessoas da situação de pobreza e miséria em menos de sete meses, as pessoas se tornam menos vulneráveis, garante a alimentação”, resume o criador do Sistema Integrado de Produção de Alimentos, Luiz Carlos Guilherme, zootecnista, pesquisador da Embrapa Cocais (Maranhão) e ex-professor temporário da UFU.
A inovação desenvolvida durante o doutorado de Luiz Guilherme na UFU e que viabilizou o sistema é a simplificação do biofiltro utilizado no sistema de recirculação da água do tanque de criação de peixes. Ele permite a degradação da amônia (tóxica para os peixes), que é transformada em nitrato pela ação bacteriana. Por isso, o tanque, que consegue oferecer água rica em nutrientes para as plantações, é o módulo principal, considerado o “coração” do Sisteminha.
“Nós conseguimos simplificar o material do biofiltro que reduziu mais de 99% do custo. Essa redução do custo permitiu a gente fazer a criação do peixe em pequenos espaços com garantia de qualidade”, explica Guilherme. “Ainda em Uberlândia, eu consegui associar essa pequena criação à produção de verduras, por exemplo, no sistema híbrido de aquaponia. Depois, conciliamos com a criação de minhocas e outras coisas, até a finalização”, conta o pesquisador.
Em 2008, o zootecnista assumiu o cargo de pesquisador na Embrapa Meio Norte, no Piauí e, em fevereiro de 2021, foi transferido para a Embrapa Cocais, no Maranhão. Foi no Nordeste que ele passou a desenvolver os módulos — que teoricamente eles já tinham sido definidos — e a colocá-los em prática. A iniciativa também passou a ser implantada no exterior.
“Pela Fundação Bill Gates, nós conseguimos ter aprovações de projetos que acabaram beneficiando famílias em Gana e Uganda, inicialmente. Atualmente, a gente tem uma relação muito boa com Moçambique e Angola. Têm também projetos já desenvolvidos em Gana, Uganda e Camarões. Temos contato com alguns países latinos, principalmente com a Colômbia, que já começa também já haver interesse muito grande por meio da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] em fazer a difusão do Sisteminha nas famílias campesinas”.
“Isso tudo nasceu na UFU, a partir do meu doutorado, de 2002 a 2005, uma tecnologia simples, patenteada pela Universidade Federal de Uberlândia e junto com a Fapemig [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais], que foi a entidade que bancou os custos da tecnologia. E hoje espalhada. Temos mais de oito premiações. Algumas até internacionais e com foco nesse desenvolvimento da capacidade de gerar segurança alimentar e geração de renda alternativa”, se orgulha o pesquisador.
Empreendedorismo
Embora seja simples, o Sisteminha tem que ser gerido como uma empresa. A princípio, sem fins lucrativos, mas com clientes: os próprios integrantes da família beneficiada. Os insumos utilizados, como sementes e ração, por exemplo, devem ser escolhidos visando à produtividade. “Porque não adianta você receber um animal, por exemplo, um pintinho GLK, ISA Brown, com a capacidade de postura de até 300 ovos por ano, e alimentá-lo com milho”, observa Guilherme.
O excedente da produção dos alimentos pode ser compartilhado com vizinhos ou vendido para possibilitar a compra dos insumos. O empreendedorismo, aliás, é outra possibilidade, além da estabilização da segurança alimentar. É o que vem ocorrendo na comunidade quilombola São Martins, em Paulistana, no sudeste do Piauí.
Tanque de criação de tilápias no quilombo São Martins, no Maranhão (foto: acervo Milena Martins)
A comunidade conheceu o Sisteminha em 2015, sendo implementado, inicialmente, por uma única família. A experiência vingou e, em novembro de 2020, recebeu apoio de projetos governamentais que contemplaram 25 das 103 famílias. Divididas em cinco grupos, os moradores montaram uma fábrica de placas de cimento para construir os 25 tanques em regime de mutirão. Também dessa forma foram montados os galinheiros.
O foco são os peixes e as galinhas de postura. De um modo geral, cada família produz 18 a 20 ovos por dia e cerca de 100 quilos de tilápia a cada 3 meses. Para inovar, estão introduzindo o frango de corte.
“A gente consegue produzir o nosso próprio alimento. Hoje vejo, orgulhosa, minha comadre fazendo bolo sem precisar comprar ovos. Já podemos vender batatas para comprar açúcar. Já podemos vender uma dúzia de ovos para comprar manteiga. A minha avaliação é totalmente positiva”, afirma Milena Martins, presidente da Associação de Quilombolas e coordenadora de Apoio das Comunidades Quilombolas do Estado do Piauí.
A insatisfação da coordenadora, no entanto, é não poder contemplar a comunidade toda e não ter água suficiente para que as famílias que já estão incluídas no projeto possam produzir mais. “Tem sido um desafio muito grande fazer com que as famílias se policiem, para entenderem que só podem plantar [de acordo] com a quantidade de água que têm. Se eu tenho 500 litros de água por dia, eu não posso plantar uma quantidade que vai precisar de mil litros. No sistema de recirculação, se eu tirar um litro de água, eu vou ter que colocar de volta no tanque um litro de água”.
A falta de água também é o problema enfrentado pela família de Adérito Nhafure Dique, morador em uma comunidade de Chimoio, na região central de Moçambique, na África. Ele tomou conhecimento do Sisteminha por meio de um missionário brasileiro em 2019 e, por meio de um celular, assistiu a vídeos com tutoriais dos módulos disponíveis na internet.
Adérito (à direita) quer treinar outras pessoas para expandir o Sisteminha (foto: acervo Adérito Dique)
Com as informações, ele construiu um tanque com capacidade de 7 mil litros de água para produção de tilápias, uma horta, um sistema de compostagem, minhocário e um viveiro para criação de porquinhos da Índia.
“A ideia é iniciar agora o treinamento de pessoas para que o Sisteminha seja implantado em outras casas em minha região, em algumas outras cidades de Moçambique e já existe um projeto para que eu leve para outros países do continente africano”, revela Dique.
Desafios
Além de destacar a importância das políticas públicas com ênfase no desenvolvimento do empreendedorismo social e dirigidas a famílias que produzem seus próprios alimentos, Luiz Guilherme aponta três desafios para o Sisteminha atualmente. Um deles é fazer chegar insumos de qualidade, com preço justo, a cada um dos beneficiários. “Isso é um gargalo grande, porque as famílias mais pobres normalmente não têm acesso a insumos de qualidade e com apoio científico”, diz.
O segundo ponto é encontrar maneiras de fazer chegar informação adequada de como utilizar esses insumos. “Isso já vem sendo facilitado pelas mídias. O Sisteminha cresceu muito, a nível de internet, com o próprio Instagram, Facebook, Telegram, Whatsapp. Foram formados inúmeros grupos e [realizada] uma divulgação muito grande”, observa.
O terceiro é a definição de linhas de crédito que possam ser utilizadas pelas pessoas mais carentes. “O Sisteminha, de certa forma, cria uma revolução na maneira das pessoas produzirem alimento com qualidade e na quantidade necessária para poder sobreviver com uma autoestima elevada. E a pessoa com a barriga cheia está pronta para buscar outras oportunidades. Esse é o foco principal do nosso trabalho”, resume o pesquisador.
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