Além do Saara – poeiras que ajudam a fertilizar a Floresta Amazônica e que chegaram nos últimos 7.500 anos têm origem de diversas fontes
A poeira mineral desempenha um papel importante tanto no sistema climático quanto na manutenção dos ecossistemas por meio das interações biogeoquímicas de macro e micronutrientes que fertilizam os oceanos e continentes. As regiões áridas e semi-áridas são as principais fontes globais de poeira, de onde as partículas podem ser levantadas para a atmosfera, transportadas e depositadas longe de suas fontes. Nesse contexto, uma vez acumulada nas camadas de sedimentos dos lagos, a poeira atua como um arquivo da dinâmica atmosférica do passado e, portanto, é provável que forneça informações sobre as condições áridas em suas áreas de origem e os padrões de circulação atmosférica associados.
A questão do Deserto do Saara fertilizando a bacia amazônica vem sendo discutida há décadas. No entanto, nunca houve um consenso. A densa floresta tropical úmida cobre a maior parte dessa região e é caracterizada por seus solos de baixa fertilidade química natural. Para a fertilização, a vegetação depende principalmente da reciclagem da matéria orgânica local e da entrada de nutrientes por meio de deposição úmida e seca. Nesse sentido, como citado na pesquisa de Nogueira et al, o surgimento e o desenvolvimento da floresta amazônica foram influenciados não apenas por mudanças na quantidade de precipitação local, mas também pelo influxo de nutrientes atmosféricos para a bacia.
Como os pesquisadores informam em seu artigo publicado na revista Communications Earth & Environment, muitos autores sugerem que a poeira do Saara contribui consideravelmente para fertilizar a floresta amazônica por meio da exportação de nutrientes. No entanto, devido às incertezas de certos bancos de dados geoquímicos e estimativas precisas de fluxos atmosféricos, a relação causal não é totalmente suportada. Alguns autores afirmam que existe uma associação entre a dispersão de poeira do Saara e o desenvolvimento da floresta tropical com base em evidências de sensoriamento remoto.
No entanto, a advecção de poeira para a bacia amazônica ao longo do tempo mudou devido a mudanças na Zona de Convergência Intertropical (ITCZ) e “fases verdes do Saara” (pesquisas indicam que há milhares de anos partes da região já foram verdes). Ainda assim, é razoável que a poeira do Saara possa impactar o setor oriental da Amazônia, considerando sua proximidade e evidências iniciais. Uma vez que a floresta amazônica cobre uma vasta área de 5.500.000 km² (entre aproximadamente 50° W e 80° W de longitude e 5° N e 17° S de latitude), os pesquisadores investigaram se um sinal/impressão digital de poeira do Saara é mensurável na região distante do setor centro-oeste da Amazônia durante o período Holoceno, que abrange os últimos 7500 anos. Para isso, foi perfurado um núcleo de sedimento em um dos locais mais remotos, intocados e isolados da região amazônica, o Lago Pata.
O Lago Pata está situado a 300m acima do nível do mar e faz parte do complexo lacustre da colina Seis Lagos. Por não estar conectado a nenhum sistema de drenagem importante, o lago constitui um sistema praticamente isolado em termos de precipitação atmosférica e acúmulo de poeira. Por sua localização privilegiada, com alto grau de isolamento continental e baixíssimo impacto humano, o Lago Pata pode ser considerado um arquivo sensível do paleoclima equatorial, conforme já sugerido por estudos palinológicos e geoquímicos.
Para a pesquisa, foi compilado um abrangente banco de dados de isótopos Sr – Nd, compreendendo as fontes de emissão potenciais mais importantes da África e da América do Sul, incluindo zonas vulcânicas andinas e Patagônia, para comparar suas assinaturas com as dos sedimentos do Holoceno do Lago Pata. Os resultados apresentados demonstrarão que, dada a complexidade dos fatores climáticos dinâmicos durante o Holoceno, e as diferentes condições climáticas na floresta amazônica e as fontes potenciais de poeira, o impacto da poeira do Saara não pode ser generalizado como a principal fonte para toda a floresta amazônica e que outras regiões fontes de poeira têm contribuições importantes.
Para reconhecer os padrões de circulação atmosférica que poderiam favorecer a entrada de poeira no Lago Pata, os autores usaram de modelo que permite a investigação de migrações de massa de ar e que tem sido usado com sucesso para dispersão de aerossóis. Neste ponto, foram usadas trajetórias retrógradas mensais de massa de ar em uma altura de camada limite intermediária nos últimos 30 anos, com o Lago Pata como ponto final. Entre os resultados, foi verificado que o conjunto de trajetórias sobrepostas revela três padrões principais e fontes potenciais associadas:
- de dezembro a abril, as massas de ar são predominantemente do Norte da África e da região do Saara/Sahel;
- de julho a setembro, duas regiões de origem diferentes, o sul da África (principalmente) e o leste dos Andes, foram detectados; e
- o período de transição de maio a junho e de outubro a novembro mostra massas de ar advindas de fontes do norte e do sul. Como esperado, devido à localização equatorial do lago, esses padrões são modulados pela posição dos ventos alísios.
Atualmente, a advecção de poeira do Saara para a bacia do Amazonas ocorre sob duas condições concorrentes: (1) uma carga máxima de poeira para a bacia do Amazonas devido à grande região desértica; e (2) às condições de umidade prevalecentes na bacia amazônica que podem favorecer a deposição de poeira do leste ao oeste da bacia amazônica devido à distribuição da precipitação que envolve toda a bacia hidrológica.
Como destacam os pesquisadores, um achado interessante decorrente de seu trabalho é que, ao contrário de muitos relatórios que afirmam que o Deserto do Saara como a única fonte de poeira que atinge a bacia amazônica, seus dados retratam um cenário mais complexo. No entanto, Nogueira et al observam que não descartam a poeira do Saara como um ator importante na fertilização da floresta amazônica. Mas suas análises mostram que esta relação provavelmente não é válida para toda a bacia, uma vez que, embora haja uma impressão digital residual de poeira do Saara, outras fontes, como o sul da África e o loesse (solo sedimentar, de cor amarelada) argentino, parecem ser mais dominantes para porções mais continentais do interior da bacia amazônica.
Em contraste com as altas cargas de poeira que atingem a bacia amazônica oriental, a partir do método isotópico, os autores estimaram contribuições do sinal de poeira do Saara/Sahel durante os últimos 7.500 anos variando em cerca de 4 a 10%. As contribuições das outras regiões foram as seguintes:
- do sul da África (aproximadamente 10–50%);
- solos bolivianos / peruanos (cerca de 8–11%); e
- loesse argentino (cerca de 13–15%).
Além destes, também é possível que poeira/cinzas de vulcanismo possam ocasionalmente ser depositadas no Lago Pata, conforme revelam suas análises.
Em resumo, os resultados indicam que as mudanças no sinal radiogênico no registro de sedimentos do Lago Pata, nos últimos 7.500 anos, são o resultado de fontes combinadas moduladas por condições climáticas locais e globais, especialmente mudanças latitudinais, possíveis variações de largura e intensificação do ITCZ e da dinâmica atmosférica sobre o sul do Oceano Atlântico. Os dados, retirados de um local remoto no interior da bacia amazônica, indicam que a influência da poeira do Saara sobre a bacia amazônica é provavelmente limitada geograficamente e, consequentemente, a questão da fertilização não pode ser generalizada para toda a bacia. Essas conclusões indicam que a questão da fertilização da floresta amazônica é uma questão multifatorial mais complexa.
Leia o artigo completo. Acesse: doi.org/10.1038/s43247-020-00071-w.