Estudo pioneiro investiga a presença de mercúrio em felídeos selvagens em áreas protegidas na Amazônia central brasileira
Vários efeitos tóxicos do mercúrio (Hg), elemento que também ocorre naturalmente, foram descritos em espécies terrestres e aquáticas nos últimos 50 anos. Em vertebrados, os efeitos perigosos do Hg foram descritos no sistema nervoso central, estrutura molecular do DNA, sistema reprodutivo, cardiovascular, endócrino e imunológico. Além disso, o mercúrio passa por um processo de biomagnificação, o que aumenta consideravelmente os riscos toxicológicos para os principais predadores.
Informações contidas no artigo de Lopes et al, publicado na Revista Acta Amazônia, mostram que na bacia amazônica, a mineração artesanal e em pequena escala de ouro tem sido uma das principais fontes antropogênicas de Hg no meio ambiente. Além da mineração de ouro, muitas outras atividades impulsionadas pelo homem podem influenciar o ciclo do Hg e aumentar a contaminação em organismos. Por exemplo, a erosão resultante do desmatamento e das queimadas pode influenciar a entrada de Hg nos sistemas aquáticos adjacentes. Além disso, em algumas sub-bacias amazônicas, as concentrações de Hg são naturalmente altas.
A principal fonte de Hg para a biota aquática é a ingestão de alimentos, e sua magnitude de incorporação está relacionada ao nível trófico do organismo. O Hg que chega ao trato digestivo por meio da ingestão de alimentos pode ser absorvido e transferido para o sistema circulatório, especialmente para moléculas orgânicas de mercúrio como o metilmercúrio. Este Hg é transportado via sangue para todos os tecidos, distribuído internamente e, devido à sua afinidade por proteínas, acumula-se em tecidos como músculos e pelos.
Portanto, a pele geralmente tem concentrações mais altas de metais e comumente mostra uma forte correlação positiva com os tecidos internos. Amostras de peles são amplamente utilizadas como um indicador de bioacumulação de Hg em espécies selvagens em todo o mundo. O uso dessas amostras tem a vantagem adicional de ser um método não invasivo para a avaliação dos níveis de Hg na fauna silvestre, especialmente em espécies que não podem ser coletadas por razões éticas e legais.
Felídeos em particular, observam os autores, enfrentam sérias ameaças em todo o mundo, devido a causas tais como caça, acidentes de trânsito e perda de habitats naturais. A contaminação por Hg pode ser uma ameaça adicional para os felídeos, pois são os principais predadores e, portanto, suscetíveis à biomagnificação. Apesar da falta de evidências fortes para felídeos amazônicos, existem vários estudos mostrando altas concentrações de Hg natural em compartimentos abióticos e bióticos na Amazônia, mesmo para regiões não impactadas.
Como informado pelos pesquisadores, essa falta de conhecimento sobre felídeos está associada principalmente à dificuldade de captura de indivíduos vivos para coleta de amostras, principalmente na região amazônica. Assim, o objetivo de seu estudo foi investigar a concentração de mercúrio total (THg) em amostras de peles de quatro espécies de que ocorrem em duas reservas de desenvolvimento sustentável na bacia do médio rio Solimões, na Amazônia central brasileira, para fornecer informações sobre concentrações de Hg para felídeos que vivem em um ambiente não impactado. Os pesquisadores destacam que este é o primeiro estudo a investigar a contaminação por mercúrio (Hg) em espécies de felídeos na Amazônia brasileira.
As amostras de peles foram coletadas de indivíduos ocorrentes nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã (RDS Mamirauá e RDS Amanã). Juntas, as duas reservas cobrem mais de 3.400.000 ha de floresta primária, com baixa perturbação antrópica e alta riqueza de vida selvagem. Amostras de pele de cinco indivíduos de vida livre de Panthera onca (Linnaeus, 1758) foram coletadas em 2010. Também foram obtidas amostras de pele de 21 espécimes de felídeos selvagens mantidos no museu do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em Tefé, Amazonas.
Os espécimes do museu foram recuperados de comunidades locais e não há detalhes registrados sobre sua idade ou causa da morte. É provável, porém, que tenham sido caçados ilegalmente ou encontrados mortos na região. O processo de taxidermia foi artesanal, por meio da secagem da pele ao sol e, em alguns casos, com adição de sal. No museu, essas peles foram armazenadas em ambientes com temperatura controlada e naftaleno.
Os indivíduos de vida livre de P. onca foram capturados para projetos de pesquisa do Instituto Mamirauá. Os animais foram sedados com Zoletil e Cetamina e liberados após procedimentos de amostragem. Amostras de peles de indivíduos vivos e de espécimes de museu foram cortadas com tesouras de alumínio da região dorsal e armazenadas em sacos de polietileno. A captura e manejo dos indivíduos silvestres de P. onca foram autorizados pela licença IBAMA / SISBIO nº. 11095-3.
Entre os resultados encontrados, as concentrações de THg variaram de 0,12 a 48,1 µg g-1, tendo diferindo significativamente entre as espécies, sendo que as comparações pareadas indicaram que P. onca e L. pardalis tiveram concentrações significativamente maiores que P. concolor.
Foto: Bruce Kirchoff/iNaturalist
Vários fatores abióticos e bióticos podem afetar o acúmulo de Hg em mamíferos selvagens. A variação intra e interespecífica observada pode estar relacionada à dieta, idade, área de vida, metabolismo, gênero e até sazonalidade.
Uma vez que a dieta é uma importante fonte de Hg para a biota, entender as teias alimentares é crucial para analisar o acúmulo de Hg. Conforme verificação de Lopes et al, uma revisão sobre o acúmulo de metal em espécies de mamíferos estabeleceu que carnívoros inseridos em teias alimentares aquáticas geralmente têm níveis mais elevados de Hg em comparação com teias alimentares terrestres. Isso provavelmente se deve ao fato de que parte expressiva da metilação do Hg ocorre em ambientes aquáticos, principalmente na interface sedimento-água, raízes de macrófitas e hipolímnio (camada mais profunda) de lagos de várzea.
Como informado, as espécies P. onca e L. pardalis apresentaram as maiores concentrações de Hg. No caso de P onca, por exemplo, os principais componentes de sua dieta são jacarés (Caiman crocodilus Linnaeus, 1758 e Melanosuchus niger Spix, 1825), que estão associados a ambientes de várzea-lacustres.
Já no caso das espécies com as menores concentrações de Hg, as mesmas têm dietas mais fortemente baseadas em presas terrestres. Enquanto a dieta de L. wiedii consiste principalmente de pequenos vertebrados, P. concolor prefere mamíferos de pequeno e médio porte. Embora nenhuma informação dietética exista para P. concolor e L. wiedii nas áreas de estudo, os autores consideram assumir que L. wiedii, sendo um felídeo arbóreo altamente qualificado, pode se alimentar principalmente de pequenos vertebrados arbóreos. Da mesma forma, apesar de indivíduos de P. concolor terem habilidades para cruzar corpos d’água, a espécie não está tão fortemente associada a ambientes aquáticos como P. onca.
Os autores concluem que seus dados sugerem que as espécies de felídeos selvagens nas regiões de várzea da Amazônia central, RDS Mamirauá e RDS Amanã, podem estar expostas a diferentes fontes de mercúrio, tendo sido detectadas altas concentrações de mercúrio total, como esperado para um predador de topo, e diferenças interespecíficas que podem estar relacionadas a diferenças nos hábitos alimentares.
Informam também que o tamanho limitado de amostra impediu análises adicionais para compreender as altas variações intraespecíficas encontradas. Além disso, as concentrações em algumas amostras excederam os limites de toxicidade do Hg para mamíferos; e as altas concentrações de THg detectadas em espécies de felídeos destacam a importância de avaliar a contaminação por mercúrio na região amazônica, incluindo áreas de conservação não impactadas.
Leia o artigo completo. Acesse: doi.org/10.1590/1809-4392201903331.
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