Cientistas comprovam que variações climáticas interferem na interação entre formigas e flores no cerrado
Pesquisa realizada numa área de cerrado em Minas Gerais demonstra como o clima influencia a interação entre plantas e animais. Os pesquisadores verificaram que o início da estação chuvosa é a época em que as plantas mais produzem néctar, o qual atrai formigas que as protegem contra animais herbívoros. Com base nos resultados do estudo, os autores do trabalho alertam que as mudanças climáticas provocadas pelo homem podem comprometer essas interações e também colocar em risco toda a vida na Terra. A pesquisa, que teve a participação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, é descrita em artigo da revista científica Journal of Ecology.
As interações entre plantas e animais existem desde o surgimento das primeiras algas, ou seja, há mais de 2 bilhões de anos. “Porém, elas se tornaram fundamentais para a explosão de vida na Terra, depois do surgimento das angiospermas, ou seja, as plantas com flores. Essas plantas são, por exemplo, a base de toda nossa cadeia alimentar. Não existiríamos sem elas”, conta ao Jornal da USP o professor Kleber Del Claro, do programa de pós-graduação em Entomologia da FFCLRP, coordenador do estudo. “Sabemos também que o clima da Terra muda naturalmente, mas nos últimos 200 anos, o Antropoceno, ‘a era do homem’, o impacto no clima tem sido gigantesco e já causa um aquecimento global irreversível, que pode ser minimizado, e está levando muitas espécies à extinção.”
A pesquisa investigou como uma das interações ecológicas mais importantes do cerrado brasileiro, a savana tropical com maior biodiversidade do mundo, é afetada pelas variações climáticas. “Assim sendo, escolhemos as 18 espécies de plantas mais abundantes e com maior número de interações com formigas para estudar a variação em sua fenologia ao longo do tempo”, relata o professor. “Nós vimos como essas variações climáticas e fenológicas impactam a produção de folhas, flores, frutos, mediada pela ação de nectários extraflorais (NEFs) que atraem formigas que protegem as plantas. O objetivo foi fornecer dados e análises confiáveis de como o clima interfere nas interações ecológicas e em seu impacto na biodiversidade.”
As interações entre formigas e plantas portadoras de NEFs estão entre os mutualismos mais comuns nas regiões neotropicais. “As plantas secretam néctar extrafloral, um alimento rico em carboidratos que atrai formigas. Em troca elas protegem as plantas contra herbívoros”, descreve Del Claro.
“Esse mutualismo está sujeito à variação temporal, na qual fatores abióticos, como, por exemplo, o clima, podem conduzir o estabelecimento e a frequência da interação”, explica o professor Kleber Del Claro. Fatores abióticos são todo tipo de influência física ou química que os seres vivos podem sofrer em um determinado ambiente, como radiação solar, temperatura, vento, água e composição do solo. “No entanto, estudos que investigam como os fatores abióticos que influenciam direta e indiretamente as interações formiga-planta-herbívoro são incipientes”, completa.
Efeitos do clima
O estudo foi feito em uma reserva de cerrado do Triângulo Mineiro, no município de Uberlândia, em Minas Gerais. “Trabalhamos no cerrado, um dos biomas mais ameaçados do planeta, pois restam menos de 8% de sua vegetação preservada. Por meio da fenologia vegetal, investigamos os efeitos diretos e indiretos da temperatura e da chuva nas interações formiga-planta-herbívoro”, relata o professor ao Jornal da USP. “A cada mês, estimamos seis fases da vida das plantas, as chamadas fenofases: folhas recentemente lavadas, folhas totalmente expandidas, caducifólia, botões florais, flores e frutas.”
Os pesquisadores investigaram se havia variação sazonal, ou seja, picos de atividade ou abundância, nas fenofases, na atividade de NEFs, quantidade de formigas e herbívoros em 18 espécies de plantas portadoras de NEFs do cerrado brasileiro. “Em segundo lugar, verificamos se o pico na atividade de NEFs e a abundância de formigas e herbívoros ocorreram simultaneamente no mesmo período e quando as plantas produzem novas folhas”, observa Del Claro. “Finalmente, investigamos se as variáveis climáticas direta e indiretamente influenciaram a interação formiga-planta-herbívoro.” As espécies de herbívoros mais comuns na região são lagartas de borboletas, besouros, gafanhotos e percevejos.
Formiga Ectatomma tuberculatum em pé sobre Lafoensia pacari, uma árvore com nectários extraflorais na ponta de cada folha – Foto: Denise Lange / Reprodução da capa do Journal of Ecology
Os resultados mostraram a ocorrência de padrões sazonais em todas as fenofases da planta, atividade de NEF e abundância de formigas e herbívoros. “O pico da atividade de NEF e abundância de formigas e herbívoros ocorreram simultaneamente no início da estação chuvosa, quando novas folhas lavaram”, ressalta o professor. A estação chuvosa tem início no final de setembro, com as chuvas mais concentradas entre novembro e janeiro, e em seguida há aumento na seca, que tem seu pico de abril a setembro. “A chuva provocou, direta e indiretamente, mudanças na produção de novas folhas, influenciou a atividade de NEF e isso, por sua vez, provocou mudanças na abundância das formigas, mas não nos herbívoros.”
De acordo com Del Claro, os resultados da pesquisa permitem um melhor entendimento de como o clima influencia na biodiversidade das interações ecológicas.
“Esse estudo mostra que o aumento da temperatura no planeta pode desestabilizar todas as redes de interações ecológicas envolvidas nesses sistemas, tanto as protetivas às plantas, como também as de produção, como a polinização, por exemplo. Ou seja, o clima e suas variações ditam a forma como as relações ecológicas se comportam e a alteração drástica nesses mecanismos pode levar a extinções em massa, inclusive a nossa.”
A pesquisa teve a participação de Eduardo Soares Calixto, doutor pelo programa de pós-graduação em Entomologia da FFCLRP, Letícia Rodrigues Novaes, mestre em Ecologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Danilo Ferreira Borges dos Santos, mestre pela FFCLRP, Denise Lange, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Santa Helena, Xoaquín Moreira – Misión Biológica de Galicia (MBG-CSIC), na Espanha, e Kleber Del-Claro, professor do programa de Entomologia da FFCLRP e da UFU.
O artigo Climate seasonality drives ant–plant–herbivore interactions via plant phenology in an extrafloral nectary-bearing plant community foi publicado no Journal of Ecology em outubro do ano passado, na edição on-line, e foi capa da versão impressa em fevereiro.
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